terça-feira, 10 de março de 2009

Apocalipse cultural

Fagundes morreu, o Fagundes que eu tive o prazer de conhecer em 1992. Ele não resistiu à contaminação homeopática da convivência com aquele ser hipopotâmico cor-de-carvão, rústico, desleixado, ignorante. Deixou despencar de vez o nível; quebrou o sagrado protocolo de conduta adquirido ao longo de toda uma vida na high society. Entregou-se à vulgaridade dos guetos, à baixeza do vocabulário marginal, aos mexericos e futricas de um cotidiano ordinário.

Não nasceu em berço de ouro. Felizmente, a educação, sim, esta foi impecável no sentido de transformá-lo em um homem de classe, com finesse, culto, inteligente. Foram décadas de treinamento para atingir a perfeição, o ideal clássico de intelectualidade; até surgir, na tarde de uma quarta-feira, o anticristo capaz de colocar tudo a perder.

Recordo-me da cena com riqueza de detalhes. Adentrou a sala alvoroçado, em constante atividade sudorípara e com uma série de trejeitos. Era um bicho selvagem, disso não havia dúvida, fora retirado bruscamente do habitat natural. Considero insano o homem responsável por aquela presença junto a nós, insano e duplamente sádico.

Chamava atenção não só o odor e a constituição física; também os farrapos carnavalescos que cobriam o corpo imenso. Ciceroneado por uma velha senhora, esticou o braço oferecendo cumprimento. Enojado, Fagundes aceitou o gesto, reconhecendo o esforço sobrenatural daquela forma de vida.

No entanto, em poucos dias de convívio forçado, o asco ficou todo por minha conta. Os dois, intelectual e aberração, passaram a interagir com curiosidade mútua; ele utilizando a bagagem teórica para analisá-la, enquanto ela se limitava a agir como o homem das cavernas que era. Viviam uma profunda experiência socioantropológica.

A priori, não me senti alarmado. O “estudo” de Fagundes haveria de acabar cedo ou tarde, e tudo se normalizaria. Afinal, o seu isolamento cultural era o grande responsável por aquela situação de espanto e, de certa forma, admiração pelo rústico. Ele era o que nós podemos chamar de uma exceção da sociedade contemporânea no que diz respeito à sociabilidade híbrida (ver Canclini).

Mais de um ano se passou desde aquela quarta-feira, dia da morte do velho Fagundes. Ele esqueceu a biblioteca particular, montada em estantes de madeira-de-lei que tomam todo o escritório de sua casa (ele se referia àquela sala como “compartimento projetado minuciosamente para o exercício da atividade intelectual”). Quantos clássicos da literatura mundial não foram lidos e relidos ali, entre aquela poltrona Elipty de couro abóbora e aquele magnífico bureau de granito? Era um escritório top, capaz de impressionar qualquer figurão da alta.

Deixou de lado, igualmente, a paixão pelas composições erudito-barrocas; Pachelbel, Vivaldi, Monteverdi, Charpentier, Bach, Schütz, Gibbons, Frescobaldi, von Biber, Purcell; todos eles amargavam o abandono de Fagundes, que provavelmente já consumia melodias profanas junto à negritude cinzenta. Dia desses, quis me dar toda a sua coleção de CD’s. Recusei, é claro, mas estou pensando em voltar atrás.

E a gastronomia alsaciana, praticamente uma cerimônia religio-gastronômica daquela sala de jantar? No lugar dos Baeckeoffes, tartes flambées choucroute e fleischnacka, deveria estar ingerindo algum cachorro-quente de periferia. Tragédia! A high society perde um grande membro para o submundo. Antes ele tivesse morrido de um mal-súbito, que Deus me perdoe. Rest in Peace, Fagundes.

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