Ah, o drama de nossas vidas! Esse conto fonsequiano imprevisível, a crônica sadomasoquista do aleatório, da qual somos reféns em cativeiro por tempo indeterminado, uma vez que não há pedidos de resgate. Enquanto isso, nos alimentamos de toda sorte de pequenas preocupações, alegrias, tristezas... e no final das contas, trata-se de uma grande espera. A vida é uma incansável preparação para o nada, mas se não fizermos isso, morremos (mais cedo) de tédio.
É uma construção insana, pois desde cedo fazemos escolhas para moldar o futuro. Criamos ou absorvemos convicções a respeito de quase tudo, e planejamos como vão ser profissão, família, ciclo de amizades, política, religião, até a decoração da sala de estar. Decidimos não só a respeito de nós, mas sobre a maioria das questões da existência, mesmo sabendo de nossa falibilidade, da falta de poder sobre os eventos, sobre o que está distante, seja por questões práticas ou pelos limites da própria condição humana.
Este é o reino da teimosia. Vivemos 'apesar de'. Uns mais otimistas, outros nem tanto, mas todos tocando pra frente cegamente, como se erguessem paredes de tijolos empilhados, e apenas tijolos, num esforço vão e sofrível. Às vezes brigamos até pelo que não queremos. Sim, somente porque precisamos brigar. Então seja por não saber quais são nossas vontades e/ou necessidades, ou por pura pressão de tudo e todos ao redor, lutamos por causas alheias. Empunhamos bandeiras de grupos sociais, nos deixamos contagiar por qualquer par de olhos castanhos, buscamos a média ponderada dos desejos de um ser humano regular e ordinário, cujas vontades possam ser recicladas em nossas vontades.
Nessa grande espera e preparação para nada - sejamos justos - também nos focamos em algo verdadeiramente útil, que é desviar das pedras que caem da ribanceira. Exatamente, essa é a melhor explicação para a existência, meus amigos. É como se estivéssemos embaixo de um barranco extremamente íngreme, e vez por outra fôssemos atingidos por algo na cabeça. Temos a convicção do nosso dever de desviar para o lado quando houver ameaças iminentes, e até podemos contar com a ajuda de alguém nessa tarefa. No entanto, é sabido que cedo ou tarde seremos alvo certeiro, tanto dos pequenos pedregulhos (esses em maior abundância) quanto das rochas realmente grandes e capazes de provocar danos irreversíveis.
No intervalo de tempo entre uma pedra e outra fazemos o possível para buscar a felicidade. Se não houver motivo, comemoramos o quão intactos estão nossos crânios. Então inventamos estórias e nos relacionamos (para o bem ou para o mal, uma vez que tanto podemos ajudar alguém a se livrar da próxima pancada na cabeça, como também apanhar do chão a melhor pedra e atirar no semelhante).
Alguns vão criar teorias a respeito da frequência com que as pedras caem, buscando explicações científicas ou metafísicas. A maioria vai acreditar que no topo do barranco há um 'deus da rocha', cuja variação de humor é responsável pelo tamanho e pela regularidade das pedras. Outros, muito poucos, vão apenas continuar existindo, ceticamente.
Sim, a existência é uma grande sala de espera, quase interminável. Nem sempre é confortável, as revistas geralmente são ruins, a companhia idem. A televisão está no mudo, sem closed caption, e mesmo que fôssemos capazes de ler lábios e compreender o que está sendo dito, a programação raramente nos agradaria.
Mesmo sem fazer ideia do motivo de estarmos sentados ali enquanto o tempo se esvai, temos absoluta certeza de que nosso plano de saúde não vai cobrir aquilo. Então olhamos para o lado, vemos alguém muito pior, supostamente inferior, e nos sentimos um pouco revigorados.
A boa saúde é, obviamente, ponto positivo, mesmo que temporário. Afinal, será preciso ter resistência quando os ventiladores quebrarem, a energia elétrica faltar, a água potável se tornar escassa. Ou pior, muito pior, quando o deus da rocha acordar de mau humor, abrir a porta que dá acesso à sala de espera e nos chamar para o ato final. Um convite que não aceita recusas, um presente sem o selo de troca, um beijo roubado, uma pedrada fatal na cabeça.
"Mais um", vai dizer alguém sentado ao seu lado. E você, que há muito tempo já se entregou ao sistema, responderá com um muxoxo incompreensível, enquanto torce com todas as suas forças para que ele seja o próximo. Não que o tempo de espera tenha feito odiá-lo (isso também), mas por puro tédio. Alem do mais, se a vida é assim mesmo aleatória, dificilmente haverá duas pedradas fatais - seguidas - em cadeiras vizinhas, correto? E por mais que esteja cansado, entedidado, com vontade de jogar videogame, você não deseja acabar com tudo isso. Você quer, muito secretamente, tornar-se o deus da rocha.
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