Não me dou com a normalidade. Sou de um jeito torto, mal-ajambrado. Estou sempre com uma peça faltando, um parafuso a menos, uma dor a mais. Meu organismo é problemático, como todos são, cada um a seu modo. Circulo cambaleante, apertando os olhos, engolindo pílulas, mas sem pedir arrego. Somente quem me conhece além das máscaras do cotidiano é capaz de enxergar.
Lido muito mal com afazeres e compromissos. Ofendo na tentativa de agradar. Calo nos momentos em que mais deveria falar. Porque minha vontade é não fazer parte desse todo complexo. De interagir tanto, de ser obrigado a dar tantas satisfações, de comparecer tantas vezes por semana no regime semi-aberto formado pela tríplice trabalho-estudo-vida social.
Não há espaço para respirar no mundo moderno. Seja qual for a profissão, o credo, a cor, a religião, há cobranças excessivas. Somos instados a exercer tantos papéis no cotidiano que nos falta uma identidade em nosso próprio âmago. Há, em cada um de nós, uma natureza abafada pela obrigação, pela expectativa alheia, pelo turbilhão de tarefas do dia a dia, pela rotina.
E se não posso fugir, entrego-me de braços abertos, ciente do mal-fazejo. Busco na realidade caótica fragmentos de paz, de ar puro, de bem-estar. Em vão.
Flerto sistematicamente com o ócio e com a solidão. São meu refúgio, minha fonte de plenitude, embora sejam facas de dois gumes. Se estou só e desocupado, que maravilha! Se me sinto só e não tenho nada para fazer, que desgraça! Faço malabarismos entre alegrias melancólicas e tristezas felizes.
Se não é possível repouso, saio em busca da excitação escondida nas checklists de todo santo dia. Não há nada lá, até que haja. Então as migalhas de inesperado enganam temporariamente a nossa fome de prazer. Se não dá certo, cedemos a vícios, ao consumo, à lascívia.
Em último caso, temos como dar cabo de tudo o que nos rodeia e inventar uma nova vida. Enfrentar o inesperado, quebrar a cara, aprender coisas novas, achar um jeito de se encontrar em algo ou algum lugar, depois de termos assumido a responsabilidade de partir, abandonar as zonas de (des)conforto.
A medida é temporária, até estarmos novamente moldados tal como engrenagens de máquinas industriais gigantes. Engessados, acostumados com as banalidades que um dia foram desafios excitantes. Os frutos das revoluções pessoais não duram. Ou melhor, até permanecem por muito tempo, mas logo perdem o brilho. Dão lugar a novas vanguardas, ao que está longe e parece genial, se visto de longe.
Mais do que buscar sucesso e realização profissional, deveríamos estar obcecados em nos divertir a qualquer custo. Trilhar caminhos fáceis e prazerosos, nem sempre ortodoxos, acessíveis ou aceitos pela sociedade. Todo o resto está baseado em objetivos implantados em nosso subconciente pela cultura.
Há quem pregue a necessidade de muitos problemas como uma forma de gerar aprendizado, experiências de vida, ou coisa que o valha. Bobagem!
Sejamos hedonistas de maneira responsável! Façamos listas mensais, semanais ou diárias de coisas, pessoas, atividades, lugares capazes de nos alegrar. Procuremos um trabalho legal o suficiente para nos deixar constrangido na hora de receber o salário, um passatempo tão ridículo e excêntrico que precisa ser praticado às escondidas.
Sejamos menos acessíveis, de maneira que nós mesmos tenhamos que dar as cartas, definir prioridades. Planejemos minuciosamente o que der na telha para, na hora da execução, mudar tudo, talvez fazer exatamente o contrário.
Encaixar-se nos papéis que nos sobram, nos clubes para os quais nos convidam, nas universidades onde somos aprovados, nas empresas, nos relacionamentos possíveis... Para que tanto esforço, se não se encaixar também é uma possibilidade?
É preciso fugir, fugir sempre. Ir para bem longe, surpreender a todos ao anunciar seus planos mirabolantes. Ou não dar satisfação. É preciso fugir e se reinventar, mesmo que não se saia do lugar. É preciso improvisar, buscar saídas para cada um dos dias pesados; criá-las, caso necessário. Inventar um modo de vida, um universo, uma realidade paralela.
Qualquer coisa, qualquer coisa. O importante é recuperar a força da respiração e a felicidade íntima de estar sendo o que se é, fazendo o que se quer, e se divertindo absurdamente. Senão o azedume toma conta. A vida nos faz de capacho. A gente chora, a gente briga, a gente morre aos poucos.
Mas quem sou eu pra falar, já que sou um torto e mal-ajambrado? Não sei. Não sei quem sou, mas tenho uma vaga ideia do que serei, ao menos nas próximas horas. Mas pode ser que mude de ideia. Ainda não tenho certeza.
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