segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Da onipresença

Tenho facilidade tremenda para nutrir ódio pelas pessoas. O merecimento é discutível, os motivos são questionáveis... apenas as odeio. Intensamente. 

É assim em toda parte, seja a passeio ou a trabalho. Sempre não vou com a cara de alguém, instintivamente. E se sou obrigado a rever a figura outras vezes, sou consumido por um asco lancinante, por uma vontade de expurgar a existência daquele ser, ou de juntar algumas mudas de roupa em minha valise e partir para bem longe. 

Como se adiantasse! Chegado em novo ambiente, logo surge uma ou mais detestáveis criaturas para me inquietar. Caso me dedicasse a fazer mal a todas elas, poderia me tornar um serial killer, um genocida, um terrorista. Feliz ou infelizmente, ao invés disso entrego minha raiva como alimento para a gastrite. 

Um desses gurus que falam na televisão disparou essa, certa feita: "tem algum problema eu ter vontade de atropelar alguém? não... contanto que eu não atropele, isso é bastante normal". É isso, eu tenho vontade de atropelar uma boa porcentagem das pessoas que me rodeiam, como naqueles jogos em que você ganha bônus ao acertar vários pedestres de uma vez. 

O mais sensato seria se pudéssemos conviver apenas com pessoas que nos são agradáveis, leves ou, para me manter cético, suportáveis. No entanto, as escolhas que fazemos rotineiramente (uma oferta de trabalho aceita, um relacionamento iniciado, a matrícula em um curso) nos aprisionam lado a lado a toda sorte de pessoas. No meu caso em particular, sempre há alguém detestável acorrentado a mim, canela-com-canela.
Nesses momentos a gente arfa, medita, respira fundo, engole seco, ignora, foge, inventa desculpas, usa fone de ouvido, fecha os olhos, prende a respiração... mas elas continuam ali. Sorridentes, em sua maioria. Seres enviados pelo capeta para nos presentear com uma avant-première do inferno. 

Algum psicólogo poderia dizer "nunca parou para pensar se o problema não está em você?" - e a partir daquele momento ele seria convertido à infindável lista dos insuportáveis, fazendo daquela a minha última sessão. Sim, o problema está em mim, como está em todos nós. Sou extremamente tolerante com todas as pessoas, mas porque preciso. Tolerar não é uma ação gratuita. Pelo contrário, custa caro, reflete na saúde, no bem estar, na sanidade mental, na vontade de viver. 

Ao menos a cada mudança de emprego ou de endereço, a cada fim de curso ou de relacionamento, a cada 100 metros caminhado, livro-me de um pé no saco (ou de vários pés, mãos e cotovelos no saco), o que me dá a oportunidade de respirar por 30 segundos. 

Não mais do que isso, pois rapidamente surge um novo sorridente enviado pelo capeta para apertar minha mão e dizer que é meu novo colega de trabalho, meu novo vizinho, meu novo síndico. Eles estão por toda a parte, a verdade é essa. 

Afastar todos eles é tarefa impossível. Não dá pra viver sem gente chata por perto, a não ser que se isole no topo de uma montanha ou coisa que o valha. E o pior, para sermos realistas na avaliação, as pessoas legais não são tão legais quanto os chatos são chatos. Há um desequilíbrio significativo na balança. 

Sim, porque quem é legal está ocupado em viver, tomar conta de si mesmo, dos seus pares, de contribuir para a melhoria da sociedade ou sei lá o que as pessoas legais fazem. O que quero dizer é que essas raridades quando surgem têm muito pouco a nos oferecer. Apenas meia hora de prosa acompanhada por um café, um e-mail encorajador no dia do seu aniversário, uma partida de poker num sábado vazio. 

Os insuportáveis, por outro lado, o são em horário integral. Colocam veneno em cada gesto, em cada ação, em cada comentário, de domingo a domingo. Eles nos sufocam sistematicamente, estão sempre presentes, à postos para despertar em nós tudo de mais desagradável. 

Faço este punhado de observações baseado não nesta semana que passou, mas em toda a minha vida. Desde as primeiras recordações, de quando era um reles pirralho, lembro-me da presença inquietante de algum ou alguns seres que me faziam querer ir pra casa jogar videogame. Sim, naquele momento eu ainda não entendia como funcionava o mundo, não conseguia classificar as pessoas, mas já tinha o meu topo de montanha. O videogame era meu isolamento, meu refúgio contra todos os que não me agradavam, contra os tios e tias irritantes, contra as crianças briguentas, contra o mundo lá fora. 

Recolhido em meus aposentos, eu me fazia super mario para pular na cabeça de quem não gostava, e assim fazê-los desaparecer. Funcionou muito bem por um tempo, até que a minha vizinha morreu e na casa dela foi morar um gordinho mais ou menos da minha idade. Ele enfiou a cabeça na janela do meu quarto, que dava para a rua, e acabou com a minha raça: "oi, sou seu novo vizinho. Abre ali pra gente jogar junto?"

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Planejamento estratégico improvisado

Não me dou com a normalidade. Sou de um jeito torto, mal-ajambrado. Estou sempre com uma peça faltando, um parafuso a menos, uma dor a mais. Meu organismo é problemático, como todos são, cada um a seu modo. Circulo cambaleante, apertando os olhos, engolindo pílulas, mas sem pedir arrego. Somente quem me conhece além das máscaras do cotidiano é capaz de enxergar.

Lido muito mal com afazeres e compromissos. Ofendo na tentativa de agradar. Calo nos momentos em que mais deveria falar. Porque minha vontade é não fazer parte desse todo complexo. De interagir tanto, de ser obrigado a dar tantas satisfações, de comparecer tantas vezes por semana no regime semi-aberto formado pela tríplice trabalho-estudo-vida social.

Não há espaço para respirar no mundo moderno. Seja qual for a profissão, o credo, a cor, a religião, há cobranças excessivas. Somos instados a exercer tantos papéis no cotidiano que nos falta uma identidade em nosso próprio âmago. Há, em cada um de nós, uma natureza abafada pela obrigação, pela expectativa alheia, pelo turbilhão de tarefas do dia a dia, pela rotina.

E se não posso fugir, entrego-me de braços abertos, ciente do mal-fazejo. Busco na realidade caótica fragmentos de paz, de ar puro, de bem-estar. Em vão.

Flerto sistematicamente com o ócio e com a solidão. São meu refúgio, minha fonte de plenitude, embora sejam facas de dois gumes. Se estou só e desocupado, que maravilha! Se me sinto só e não tenho nada para fazer, que desgraça! Faço malabarismos entre alegrias melancólicas e tristezas felizes.

Se não é possível repouso, saio em busca da excitação escondida nas checklists de todo santo dia. Não há nada lá, até que haja. Então as migalhas de inesperado enganam temporariamente a nossa fome de prazer. Se não dá certo, cedemos a vícios, ao consumo, à lascívia.

Em último caso, temos como dar cabo de tudo o que nos rodeia e inventar uma nova vida. Enfrentar o inesperado, quebrar a cara, aprender coisas novas, achar um jeito de se encontrar em algo ou algum lugar, depois de termos assumido a responsabilidade de partir, abandonar as zonas de (des)conforto.

A medida é temporária, até estarmos novamente moldados tal como engrenagens de máquinas industriais gigantes. Engessados, acostumados com as banalidades que um dia foram desafios excitantes. Os frutos das revoluções pessoais não duram. Ou melhor, até permanecem por muito tempo, mas logo perdem o brilho. Dão lugar a novas vanguardas, ao que está longe e parece genial, se visto de longe.

Mais do que buscar sucesso e realização profissional, deveríamos estar obcecados em nos divertir a qualquer custo. Trilhar caminhos fáceis e prazerosos, nem sempre ortodoxos, acessíveis ou aceitos pela sociedade. Todo o resto está baseado em objetivos implantados em nosso subconciente pela cultura.

Há quem pregue a necessidade de muitos problemas como uma forma de gerar aprendizado, experiências de vida, ou coisa que o valha. Bobagem!

Sejamos hedonistas de maneira responsável! Façamos listas mensais, semanais ou diárias de coisas, pessoas, atividades, lugares capazes de nos alegrar. Procuremos um trabalho legal o suficiente para nos deixar constrangido na hora de receber o salário, um passatempo tão ridículo e excêntrico que precisa ser praticado às escondidas.

Sejamos menos acessíveis, de maneira que nós mesmos tenhamos que dar as cartas, definir prioridades. Planejemos minuciosamente o que der na telha para, na hora da execução, mudar tudo, talvez fazer exatamente o contrário.

Encaixar-se nos papéis que nos sobram, nos clubes para os quais nos convidam, nas universidades onde somos aprovados, nas empresas, nos relacionamentos possíveis... Para que tanto esforço, se não se encaixar também é uma possibilidade?

É preciso fugir, fugir sempre. Ir para bem longe, surpreender a todos ao anunciar seus planos mirabolantes. Ou não dar satisfação. É preciso fugir e se reinventar, mesmo que não se saia do lugar. É preciso improvisar, buscar saídas para cada um dos dias pesados; criá-las, caso necessário. Inventar um modo de vida, um universo, uma realidade paralela.

Qualquer coisa, qualquer coisa. O importante é recuperar a força da respiração e a felicidade íntima de estar sendo o que se é, fazendo o que se quer, e se divertindo absurdamente. Senão o azedume toma conta. A vida nos faz de capacho. A gente chora, a gente briga, a gente morre aos poucos.

Mas quem sou eu pra falar, já que sou um torto e mal-ajambrado? Não sei. Não sei quem sou, mas tenho uma vaga ideia do que serei, ao menos nas próximas horas. Mas pode ser que mude de ideia. Ainda não tenho certeza.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Navegar é preciso; improvisar não é preciso

O fator tempo me desconserta. Não apenas pela estranhíssima percepção relativa que temos a respeito da velocidade, pelas horas de espera em consultórios médicos que parecem intermináveis ou pelas horas de lazer que parecem se esvair em um par de minutos. Mais do que isso, fico perplexo como, de fato, os acontecimentos podem variar de velocidade em uma escala extremamente larga, indo do imediato, quase instantâneo, o inesperado já, agora, até espaços de tempo muito, muito longos. Incomoda-me a nossa passividade obrigatória a respeito deste e de tantos outros aspectos do cotidiano.

É costume nos basearmos no histórico de situações semelhantes para calcularmos, de certa forma, uma média de resposta, uma previsão mais ou menos acurada dos retornos, das mudanças, das intempéries usuais. Talvez esse "método" seja eficaz quando se trata de operações bancárias, processos jurídicos, entregas de um fornecedor. Mas quando se trata da vida pessoal, e até dos fatores pessoais que envolvem o lado profissional, a verdade é que estamos muito mais vulneráveis à velocidade randômica dos acontecimentos.

Talvez seja o encadeamento dos inúmeros fatores que nos são invisíveis. Por sermos criaturas egocêntricas, enxergamos o "agora" como sendo tudo o que nos rodeia, e de fato o é, para nós. Mas também o presente é presente para todas as outras pessoas, sejam elas próximas a nós ou não. Combinados, o que acontece aqui, ali, acolá e em toda a parte nos coloca nessa posição passiva a respeito de quando, onde e como.

Pessoas se apegam a conceitos religiosos, a um suposto destino, sentem-se impressionadas com supostas coincidências. São caminhos mais confortáveis para lidar com nossa visível impotência. Por não trilhar nenhum deles, e ser bastante cético a respeito de quase tudo, resta-me apenas minha perplexidade.

Diante da falta de controle, o mais adequado, parece-me, é estar apto para improvisar. Esquivar-se, correr, desacelerar, dar meia volta, fazer o que for necessário para equilibrar a balança. São decisões tomadas a todo momento, e sempre, quase sempre em um piscar de olhos. Conscientes e inconscientes, elas nos levam para caminhos diversos e aí, sim, construímos o que por ora podemos chamar de destino (neste caso, como sinônimo de futuro, e não de algo pré-determinado).

Acontece que improvisar continuamente é tarefa árdua e por isso nos apegamos a convicções, a visões de mundo, ou quaisquer instrumentos desse tipo que nos deem algum balizamento para  as repetidas tomadas de decisão, sejam elas imediatas ou de longo prazo. Seja qual for o caso, erramos bastante, e sequer percebemos os erros, tampouco temos oportunidade de aprender com eles.

Além do improviso, há as cartas na manga, a construção de cenários possíveis, e o consequente planejamento para múltiplas possibilidades. Ainda assim, somos pegos de supetão sistematicamente, e escorregamos diante das escolhas. Agimos precipitadamente em uns casos, ficamos passivos em absoluto em outros. Perdemos o tempo de resposta, chutamos cachorro morto, remediamos o que é saudável. E então surgem as consequências.

Muitos não suportam o peso dessa responsabilidade, e na tentativa de sentirem-se mais confortáveis simplesmente tiram-no de seus ombros. Perdidos e/ou assustados com a imprevisibilidade dos fatos, atribuem aos já citados caminhos mais fáceis, como a suposta vontade de algum deus, ou o próprio destino (aqui entendido como a ingênua percepção de que o futuro já estava escrito em algum livro mágico).

Engolidos pelo dia a dia, preferimos não pensar em nada disso, e tocar adiante da melhor maneira possível. Fechamos os olhos para o turbilhão de fatos aleatórios, não consideramos as conexões entre as muitas minúcias do cotidiano, o que nos leva a um irresponsável piloto automático que, sim, cumpre sua função ao manter o curso programado, mas como não somos aeronaves cruzando espaços aéreos, tal atitude nos leva a atropelarmos e sermos atropelados pelos maus improvisos (ou pela falta deles).

A boa notícia, enfim, é que não há solução nem fórmula mágica, certo ou errado. Obviamente, tenho minha maneira de lidar com o aleatório, com o improvável, com o imprevisível, com a falta de controle sobre o tempo. Mas não é a melhor, e jamais deve ser copiada. Incluo-me no conjunto dos extremamente incompetentes para improvisar sempre de maneira correta. Mais uma vez, o único registro adicional que faço é de minha inútil, incômoda e passiva perplexidade.

Não tenho conselhos para dar. Também não quero recebê-los de quem estiver disposto a compartilhar. Todos os que ouvi a esse respeito apenas contribuíram para minha percepção de que o tempo estava passando ridiculamente devagar. Não que eu faça questão de mais velocidade. Seguirei perplexo, improvisando como parecer mais conveniente.

domingo, 27 de maio de 2012

Drama e suspense de hoje são romances de amanhã

Chove forte neste momento. Há 30 segundos não chovia. Olho para o quadro de avisos na parede da sala e releio pela enésima vez o “how things change!” de uma ilustração colorida. E não paro de pensar nas mudanças, na fluidez imprevisível do que nos rodeia. É quase dia, e não durmo de tanto processar mentalmente informações diversas. De vislumbrar as possibilidades de um futuro breve – tão incerto, tão arriscado – de repassar as decisões difíceis de um passado breve – tão nebuloso, tão confuso. Rascunho em pedaços de papel planos C e D, haja vista que já estou no B. Vez ou outra rio sem jeito da maneira como planejo o que não depende de mim. É tambem um exercício para entender o que tem acontecido. Quero compreender como tenho sido sacolejado pelos acontecimentos, muitos deles  provocados por mim mesmo. How things change! Traço linhas do tempo para relembrar a distância temporal entre os acontecimentos, e só consigo enxergar o não-planejado, o que caiu no meu colo, o que me foi tirado abruptamente, os tombos que levei, as oportunidades oferecidas de repente, as frustrações inevitáveis. É preciso planejar apesar disso. Tento me lembrar a última vez em que estive tão desnorteado. Não consigo identificar situações parecidas, tão intensas quanto esta. Mas logo me corrijo: a intensidade do desnorteamento é medido de modo bastante arbitrário, pois se trata do presente. E quando se trata de estar confuso com o turbilhão de informações e possibilidades, somente registramos tal intensidade no período de tempo em que a vivemos.  Depois, quando é passado, momentos como este ficam em nossa memória radicalmente suavizados. A resolução de problemas antigos parecem óbvias depois de alguns anos. As decisões tomadas em épocas passadas não mais parecem tão dramáticas, depois de esquecermos um pouco quais eram as outras opções, os riscos envolvidos, o peso nos ombros. Qualquer situação vivida agora nos parece mais intensa. Qualquer dor doi mais forte que as dores do passado. Qualquer preocupação perturba mais do que quaisquer aborrecimentos de outrora. Então abraço o meu desnorteio momentâneo na tentativa de deixá-lo mais leve. De contaminá-lo com algum otimismo que não seja burro. Agora, sim, já é dia. E não chove mais. How things change!

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Chá de gergelim, naufrágio e um passo à frente

Uma grande inspiração. Com essas palavras, em letra de forma, rabiscadas em um papel tamanho A6, já preenchido por dezenas de outros garranchos, expressei sucintamente a maneira como enxergava, naquele momento, alguém em plena ascensão, e de postura elegante, discreta, porém pragmática e eficaz. Dias depois, respondeu-me com sorriso envergonhado, ter gostado da mensagem. O afago na vaidade, no entanto, se perdeu no tempo. E poucos meses depois, veio de fato a resposta dura, seca, desagradável, porém verdadeira. Sou o avesso de uma inspiração. Ou melhor, estou assim, haja vista que a observação não se dirigia a minha pessoa, mas a atuação pífia em um período de tempo. Medindo as palavras, imbuída de um visível constrangimento, teve a iniciativa de me convidar a um bate-papo aparentemente despretensioso que, logo nos primeiros segundos, revelou-se ser o primeiro punhado de terra jogado nesta etapa profissional em que me encontro. Foi sincera, utilizando-se de comentários cirúrgicos para resumir um descontentamento generalizado, vale ressaltar, mais do que justo. Pego de surpresa, acoado, agi de maneira medíocre. Fiquei na defensiva, enumerando possíveis conquistas, na realidade não concretizadas, relatei incompatibilidades, indisposição com algumas pessoas, e o suposto pronto-atendimento a demandas vindas de cima. Fui verdadeiro. E completamente falso. "Fale com o coração", disse-me, com uma frieza de quem não acreditava em nada. Reconheci dificuldades, obstáculos, revelei esforços cotidianos. Em vão. Entre uma pausa e outra, telefonou para a secretária trazer algo para saciar sua fome. Bolacha com chá de gergelim. Aproveitei a pausa para ler todas as entrelinhas daquela conversa. Ofereceu-me o lanche e, por impulso, disse que nunca bebo chá. De fato não bebo, mas não estava falando do chá, estava apenas sendo incompetente em falar-lhe toda a verdade. Disse-me que observa pessoas, gestos, posturas, independente de palavras. E, como num ato de misericórdia, ofereceu ajuda para quaisquer dificuldades futuras. Não sabia ela que havia disparado um gatilho. Acendido um estopim que começou a queimar em alta velocidade. Não digo isso por me achar essencial, mas por reconhecer quando um castelo de areia, ou de cartas de baralho empilhados, como queira, insiste em se desmanchar, a despeito dos esforços alheios. Foi um grande gesto me convidar para aquela conversa. Faltou apenas considerar o contexto. O que vem desabando desde o princípio, e o potencial para levar tudo ao chão. Retirar a décima segunda peça de um quebra-cabeça sem coerência. Tenho falhado, sim, juntamente com uma grande pequena equipe. Uma falha coletiva que não vai acabar tão cedo, ao menos da maneira como enxergo. Fragilizado diante de uma centena de outros detalhes desconhecidos de minha interlocutora, vesti naquele momento meu colete a prova d'água, e estou com os pés na água aguardando o momento de abandonar um barco que afunda. Não sem lamentar pelo naufrágio. Não sem reconhecer minhas falhas enquanto tripulante, não sem reconhecer a falha inicial de ter embarcado em um projeto fadado a este fim (especialmente no que diz respeito a capital humano). Nietzsche, sempre ele, nos fala do quanto morremos ao longo da vida. Cada período como este representa um fim de nossa existência, e um recomeço. De luto por nós mesmos (ou não), reconstruímos uma nova história, e isso é essencial para seguir adiante. É bom falhar. Muito bom. Melhor ainda quando temos consciência plena da falha, dos motivos que levaram a ela, das circunstâncias que nos levaram a uma serie de equívocos, de nossa parcela de culpa, e de termos poder e forças suficientes para colocar um ponto final e recomeçar. É bom perceber o quanto demoramos para atuar no que desde o princípio não nos parecia correto. É bom levar um pé na bunda de alguém que não valia a pena. É bom se livrar de um vício. É bom ter livre-arbítrio para decidir o que fazer com seu próprio tempo. É ótimo ter a chance de improvisar com responsabilidade. Ter convicção de que é possível se reinventar, abrir um caminho no meio de uma bifurcação. Se livrar de amarras, de problemas reais, de problemas que só existem em nossas cabeças, de pessoas que não nos acrescentam. É excelente ter "balls" para ser radical quando mente e coração se alinham e nos apontam para uma direção nova. Mesmo que desconhecida, mesmo que arriscada, mesmo que desaconselhável por meia dúzia de quem conhece um doze avos de nosso cotidiano. Primordial, nessas horas, é poder contar com quem nos ama, ou ao menos nos tem algum apreço, admiração, respeito. É confortante olhar para trás e para os lados e perceber que nós somos muito mais do que agora, do que um determinado papel que concordamos em assumir. Antes disso, há uma infinidade a ser considerada. Reconhecer o caminho que trilhamos com competência, as horas que dedicamos a uma infinidade de conhecimentos que consideramos válidos, de amizades que cultivamos, a maioria delas despretensiosamente. Saber de que ao menos os dedos de uma mão são capazes de contar criaturas que acreditam no nosso talento e se interessam verdadeiramente por eles. Não por cortesia, mas por benefício recíproco. Nenhum homem é uma ilha, a não ser por opção. E se fôssemos ilhas, a trajetória seria galgada na construção de pontes sólidas. De laços firmes. Conexões que nos torna, a cada dia, ainda mais sólidos, ainda mais convictos do que somos, do que podemos, de nosso limites, que podem e devem ser ultrapassados de mãos dadas com quem nos respalda. E diante disso problemas são minimizados, até desaparecem, tornam-se oportunidades, criam molas propulsoras para alcançarmos o que antes parecia inalcançável. São essas forças que devem ser levadas em consideração em nossas grandes decisões, por mais que pareçam impulsivas. Sim, porque as pequenas decisões do cotidiano são aquelas que exigem nossa razão, nosso pragmatismo. Mas, se há planejamento, se há precaução, se há coragem e se somos fiéis a nossas convicções, as grandes decisões não só podem, como devem, ser guiadas por pura emoção. Pelo nosso inconsciente, onde estão arquivadas uma tonelada e meia do que somos, do que queremos de verdade. Pensar com o coração, ser 'irresponsavelmente' coerente com nossos desejos. E seguir em frente de cabeça erguida, apoiado em quem somos em nossa essência, em quem somos não isoladamente, mas no contexto em que vivemos. É ter os pés no chão, a ambição de sempre, o orgulho do caminho percorrido e o pleno conhecimento do próprio potencial.

A existência da escuridão

Confusão mental que se instala por tudo e por nada. Basta um par de solicitações para se perder o corrimão na descida da escada que dá voltas em torno de si mesma, criando espiral de degraus minúsculos, que não cabem  meus pés, que não suportam meu peso, minha fragilidade. E despenco, aos solavancos, contando a velocidade em porradas por segundo, dessas que ninguém bate, dessas de quando se chuta a quina do móvel, ou se esmurra a parede, ou se corta com papel. É como se nada estivesse no lugar, e por isso se torna inevitável esbarrar nos incontáveis obstáculos que se transformaram as pequenas grandes coisas de sempre. E tudo exige esforço extra, há excesso de consciência no processo de respiração (talvez por isso, em qualquer descuido falta-me ar). Se não há equilíbrio, se não há caminho seguro, se não há capacidade de manter-se erguido, penso se não seria o caso de partir, de buscar caminhos menos tortuosos, sem grandes benefícios ou obstáculos, sem grandes desafios ou recompensas. Sofrer pelo chão que se pisa parece-me um fardo demasiadamente grande para carregar. Há opções, sempre há opçõēs, e traio a mim mesmo ao não enxergá-las, ao não aproveitá-la, a despeito de minha visão turva e parcial dos acontecimentos. Por vezes sinto-me sugado pela abstração alienante da posição que (equivocadamente?) ocupo. Não há mais-valia, não há produtividade significativa, não há sentido continuar de punhos abotoados para fingir que algo importante acontece a minha frente. Nada acontece, em absoluto. E de punhos e dentes cerrados, estremeço diante do insucesso de minhas apostas, do desmoronamento de projetos. Da vida, enquanto projeto, do fracasso, enquanto percurso a ser evitado. O mundo inteiro, toda a existência, tudo que se move e o que já deixou de se mover,  todas as coisas, todos os acontecimentos, tudo foi vítima de filtro escuro e embassado. E se a percepção muda, muda de fato o que é percebido. Nada nem ninguém é isento de culpa. Se vejo a escuridão, a escuridão existe.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Vazio, espera e silêncio

Espero os efeitos, espero a sanidade, espero, espero. Enquanto isso, o vazio repousa ao meu lado. Em mim. Como guardião de um enfermo, o nada me protege de ameaças inexistentes. A ausência de sentido me conforta, pois não preciso caminhar em direção a sentido algum. A compreensão alheia abraça o incompreensível, o inusitado colapso, a fuga da inércia. Nada acontece de fato, e os tropeços aumentam, as topadas arrancam pedaços. Tudo o que se fala é em relação a um futuro que não existe. Sim, porque futuro algum é capaz de se tornar real, salvo em nossas mentes. Só há presente, um hoje e agora que se alonga infinitamente, além de parcos resquícios de passado que de nada me valhem. Impedido por tudo e todos de parar, sigo adiante arrastado, em uma estação de trem desativada. Apenas o silêncio me acompanha, lambendo minhas feridas em carne viva. Aguardo algo que não é futuro, que não vem do outro, que não se chama esperança. Apenas espero, espero, espero.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Janela da alma


Os olhos falam. Mudos, fundos, abatidos. Os olhos pedem ajuda, pedem descanso, piedade. Por trás das lentes escuras, preserva-se em sua intimidade quase inquebrável. Mas entre o intercâmbio de lentes eis que surge uma janela de tempo para os olhos falarem, mesmo que monossilabicamente. Recebida por um outro par, verde claro, experiente, a mensagem é rebatida com uma injeção de ânimo. O assunto era o menor possível, mas a miudeza se fez de metáfora para o todo, como é frequente para os bons observadores. Em poucas linhas, foi dito para seguir, fazer o que se é preciso, o que se quer, sem considerar demasiadamente a opinião alheia. Não se é insubstituível, nem indispensável. Portanto, dar passos mais largos do que as pernas é opção, mesmo que inconsciente. Desacelerar é palavra de ordem.